Poemas ao Vento
Paulo Leminski
Sopra o vento, sopra o vento,
Sopra alto o vento lá fora;
Mas também meu pensamento
Tem um vento que o devora.
Há uma íntima intenção
Que tumultua em meu ser
E faz do meu coração
O que um vento quer varrer;
Não sei se há ramos deitados
Abaixo no temporal,
Se pés do chão levantados
Num sopro onde tudo é igual.
Dos ramos que ali caíram
Sei só que há mágoas e dores
Destinadas a não ser
Mais que um desfolhar de flores.
“Água da palavra
Quando mais dentro aflora”
Contexto: No Brasil, fermentam por todos os lados motivos para termos chegado a esse cenário alardeado como “crise política” – um golpe, uma presidenta destituída, reformas econômicas que não se completam, intervenção do exército nas ruas do Rio de Janeiro, como propaganda eleitoral para 2018, e um governo que inviabiliza qualquer crescimento nos campos da educação, da cultura, da economia, enquanto as investigações da “Operação Lava Jato” disseminam pânico numa população de políticos e empresários que se consideravam invulneráveis. Tudo isso anda de mãos dadas com uma lógica de impunidade, que há tempos opera no país, e com uma repressão, descaradamente em vigência, silenciando vozes que ousam se opor aos ditames corruptos e violentos desse tal poder (#mariellepresente).
“Como as palavras podem voltar a dizer no Brasil?”, questiona a escritora brasileira Eliane Brum[1]. A atual crise, segunda ela, é também uma crise de palavra. Fomos interditados. Nossas palavras, nosso dizer tornaram-se garrafas jogadas ao mar. Fomos distanciados propositalmente dos nossos destinatários. Nossas palavras são apenas repetições que voltam para nós mesmos ou para si mesmas, na melhor das hipóteses. Diante desse cenário de “encarceramento da língua”, que forças as palavras podem revolver para voltar a dizer no Brasil, sobre o Brasil, atravessando o Brasil?
“Risca certeira”[2]: João Guimarães Rosa fabulou um Brasil nada turístico e distante das praias – o sertão profundo, onde vive trabalhador da roça, e as lamúrias de um país para dentro de si. Grande curioso pelas gramáticas, Guimarães falava 19 línguas e era um inventor de palavras, de expressões, de noções linguísticas em seus romances. O escritor intraduzível, cuja escrita é de vastíssima interpretação mesmo para brasileiros, trocou cartas com alguns de seus tradutores que estão reunidas no Acervo João Guimarães Rosa, do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB/USP), em São Paulo, e totalizam 372 documentos. Estão publicadas as cartas trocadas com o tradutor italiano Edoardo Bizzarri, com o tradutor alemão Curt Meyer-Clason e com a tradutora estadunidense Harriet de Onís. A primeira tradução de uma obra de Guimarães para o idioma alemão foi publicada em 1964. Tradutor e autor concordaram, então, com uma versão de “Grande sertão: veredas”, após seis anos de trabalho e negociações editoriais. Em sua tradução, Clason construiu um glossário com 57 palavras que eram impossíveis de traduzir para o alemão, dentre elas: sertão, vereda, quintal, sêo.
A relação entre o conto “A terceira margem do rio” (publicado no livro Primeiras estórias, em 1962), de Guimarães Rosa, e a composição musical de mesmo título, de Milton Nascimento e Caetano Veloso (Circuladô[3], lançado em 1991), interessa para o contexto dessa mostra. Os músicos tentaram recriar o conto a partir da sonoridade das palavras e do ritmo da narrativa de Guimarães e também levaram em consideração algumas perguntas que seguem sem explicação e acontecimentos sem antecedentes na trama, como a decisão repentina de um pai em largar sua vida e viver em uma canoa, o que é a terceira margem do rio e o que é esse rio, metaforicamente.
O conto, narrado pelo filho, é uma história acerca do que não se enquadra, do que não somos habituados a viver, numa linguagem de maravilhamento e de transcendência sobre acontecimentos fantásticos. Milton e Caetano versaram sobre a angústia do filho, o silêncio do pai, a figura misteriosa de um rio e as densidades constitutivas do texto-teia de Guimarães: “Proa da palavra, duro silêncio, nosso pai,/ Margem da palavra entre as escuras duas/ Margens da palavra, clareira, luz madura/ Rosa da palavra, puro silêncio, nosso pai/ Meio a meio o rio ri por entre as árvores da vida/ O rio riu, ri por sob a risca da canoa/ O rio viu, vi e ninguém jamais ouviu/ O rio, ouviu, ouvi a voz das águas/ Asa da palavra, asa parada agora”[4]. E, assim, evocaram também a narrativa misteriosa do conto em que elementos como água, tronco, natureza, fluidez, silêncio ganham sonoridade, nos convidando a navegar por um rio denso, escuro, perigoso.
O título da mostra, explícita referência a versos da música: “Água da palavra/ Quando mais dentro aflora”, tenta evidenciar a palavra e, junto com ela, a sua pronúncia e a sua força de narrar e ficcionalizar, como fonte inesgotável de sentidos: sempre a serem refeitos, exploráveis, manufaturados, em plena abundância de algo a dizer, pensar e inventar sobre o mundo. Podemos, assim, admitir, a palavra como um rio imenso, de águas profundas a se mergulhar, cujo percurso é um abismo sem fim e em cujas margens não cartografáveis os avanços de poder não penetram pois a jurisdição é a do desejo, sempre mutante, sempre insistente, sempre incontestável.
Contraplano ou “são muitas as chaves quando somos mais de um”[5]: A literatura é um dos nossos poucos abrigos. E reside aí algumas das hipóteses desse projeto de exposição. 7 artistas se conectam por processos de tradução de obras literárias contemporâneas brasileiras. Jogam tentáculos com a intenção de ampliar, trans-criar, atualizar, recontar essas narrativas. E nesse sentido, o dizer por escrito e a linguagem que daí se amplia são uma arma potente, onde construímos lugar de voo, de experimentação. A palavra – instância conjugada da língua – é matéria e ignição para os trabalhos de Anna Guilhermina, Fabio Morais, Isabella Beneduci Assad, Lívia Aquino, Karina Machado, Marta Matushita e Ricardo Barcellos.
E assim, pensamos o criar como luta contra a afasia, como resistência, ainda que estes atos sejam uma interferência mínima e de alastramento contido; um mero caminhar na contramão, que seja; um mínimo gesto de fratura da ordem fatídica desse real que nos interpela à queima roupa. A arte pode ser apenas um esboço de interrupção, que, ao adicionar uma imagem, uma percepção do real, um sentido outro de estar no mundo, introduz, ainda assim, uma pausa que pode confundir os poderes vigentes e uma chance de tornar pronunciável outras forças de engajamento, de discussão, de combate.
Ainda que a descrença e as intensas ondas de opressão nos violentem, alguma resistência nos mobiliza a um exercício de invenção e de produção poética. A essa vida por um fio, resistimos bravamente. Contra a permanência das estruturas, contra a mera aceitação ao “é assim que temos que sobreviver”, contra a paralisia. A arte não é o único caminho, temos isso em mente. A luta é coletiva e ancorada em muitas mãos e fazeres. Mas compartilhamos aqui um desenho de algo que, ao menos ousa, projetar um possível ser e estar juntos, como um refluxo de não ao que não suportamos e de sim ao que desejamos.
“rio abaixo, rio a fora, rio a dentro”[6]: Em tempo, é preciso deixar claro: há muitos modos de efetivar um diálogo entre São Paulo e Berlim. Arquitetamos esse projeto que pretende lançar olhares em nossos escritores – Miná Bulcão Ribas, Ana Cristina Cesar, João Guimarães Rosa, Adelaide Ivánova, Hilda Hilst, Clarice Lispector, Paulo Leminski – considerando suas obras e suas dizibilidades como um corpo que deixa transparecer muito acerca do Brasil, dos nossos afetos, dos nossos maus tempos políticos, de nossas infâmias, de nossos prazeres, de nossas ousadias culturais, feministas, literárias de renomear/reencenar a palavra. Assim, acreditamos que os gestos dos artistas que irrompem das páginas dessas escritoras e escritores são uma insistência que re-presentifica, ao mesmo tempo em que inventa questões, poéticas, sons, imagens e testemunhas-autoras do que fora constituído anteriormente nos livros já publicados. Tratam-se, portanto, de operações tradutórias e de ações que ampliam “modos de querer ver” o original, para citar Walter Benjamin (A tarefa do tradutor, 1923),
Nesse sentido, é preciso ressaltar que há no Brasil um grande time de poetas/tradutores, talvez encabeçado por Haroldo de Campos, Augusto de Campos, Décio Pignatari e Julio Plaza que encararam a tarefa descrita por Benjamin, como uma ação nas estruturas, entre linguagens, como uma ação lúdica e lúcida, crítica e criativa. “como diálogo de signos, como um outro nas diferenças (…). quer dizer, como trânsito de sentidos, como transcriação de formas da historicidade. (…) a tradução, como prática intersemiótica, depende muito mais das qualidades criativas e repertoriais do tradutor, quer dizer, de sua sensibilidade, do que da existência apriorística de um conjunto de normas e teorias: ‘para traduzir os poetas, há que saber-se poeta’”[7].
E é na esteira desses pensamentos ressoantes que os trabalhos se debruçam. É possível, então, perceber que o conjunto de trabalhos apresentados na mostra depara-se com questões de atualização e de refeitura de contextos literários para o campo das artes visuais: em práticas de apropriação de textos e ressignificação de tramas literárias por meio de experimentação de matérias primas; em exercícios performativos, que elucidam e trazem à tona questões biográficas e históricas; em processos de formulação de arquivos, seleção e edição de imagens que buscam re-caracterizar algo que não estava obviamente expresso nos textos, mas que suscita tais movimentos de leitura; em procedimentos de fratura e também de reescrita de obras literárias, com a intenção de ressaltar questões estruturais das narrativas ou dos processos de constituição ficcional que figuram nas obras originais e que são ressaltadas com outros ares nos trabalhos dos artistas.
Todos esses gestos em suas diversidades criam um outro lugar/tempo de ver, de ser e de exercitar literatura – externa aos livros, materializada no espaço, disponível ao/com o corpo. Os trabalhos parecem nos provocar a perceber outros tantos e variáveis sentidos daquilo que habita o terreno da palavra. Assim, nosso diálogo de aqui chega a um outro agora, em Berlim, com a vontade de narrar “o dentro do Brasil”[8]. E também com a vontade de ressaltar nesse manejo da palavra transfigurada, nesse ofício de (in)traduzibilidade entre português e alemão, nessa ponte constituída de reticências e potências: “a margem da palavra/ a hora da palavra/ a casa da palavra, onde o silêncio mora/ brasa da palavra”[9].
Galciani Neves
[1] Texto “O Brasil desassombrado pelas palavras-fantasmas”, de Eliane Brum, publicado em 10/julho/2017, em
https://brasil.elpais.com/brasil/2017/07/10/opinion/1499694080_981744.html
[2] Verso de “A terceira margem do rio”, composição de Caetano Veloso e Milton Nascimento.
[3] Disco de Caetano Veloso, em que o cantor e compositor faz homenagens a grandes nomes da literatura brasileira.
[4] Verso de “A terceira margem do rio”, composição de Caetano Veloso e Milton Nascimento.
[5] Anotações da artista Mayra Martins Redin, 2018.
[6] Trecho de “A terceira margem do rio”, de João Guimarães Rosa.
[7] Trechos do livro Tradução Intersemiótica, de Julio Plaza, 2003.
[8] Trecho de conversa entre Caetano Veloso e Milton Nascimento, no vídeo disponível em https://www.youtube.com/watch?v=j32B7tz-5Cs&list=RDj32B7tz-5Cs
[9] Versos de “A terceira margem do rio”, composição de Caetano Veloso e Milton Nascimento, 1991.