ESTÚDIO ESTUDO

Estúdio Estudo, de Ricardo Barcellos, desfaz percursos unilaterais em imagens que preservam o emaranhado de passantes anônimos, feito um espelho que carrega todos os corpos e objetos nele refletidos ao longo de sua presença no mundo. A monumentalidade de Percurso (2019) favorece o corpo a corpo com marcas de ancestralidades revisitadas no tempo presente e assimila algumas reflexões acerca de estudos de imagens que o artista explora em estúdios temporários, criados em alto-mar, em sítios arqueológicos ou em correntezas de rios. Lampejos negros (2019) pulsa presenças intermitentes que ocupam o centro do vídeo e fazem desaparecer o clarão que deixa entrever parte da paisagem, fazendo o negativo da imagem pulsar ao movimento de uma canoa que atravessa a vegetação.

A obra que dá título à exposição é a única presença de corpos nesta montagem. Trata-se do esfacelamento de figuras idênticas testemunhadas pelo artista, o sujeito a encarar em seu ambiente de trabalho a iminência do desaparecimento de máquinas de fazer imagens, assim como percebe o medo expresso na face daqueles que testemunham sua própria ameaça. Em todos os casos, imagens rebatidas, despedaçadas ou constituídas de vazios substantivos conseguem gerar espaço para acolher o inominável. Aproximar a matéria densa de elementos vazios e efeitos que alteram a percepção da paisagem e a relação desta com corpos despedaçados são elementos que convidam a mergulhar no céu oceânico de Saudades íntimas alagadas (2021), obra realizada para a exposição, ocasião em que um aparelho de fazer imagens sobrevoou por quilômetros o oceano da costa paulista em busca de horizontes inatingíveis, com os quais o sentir, o desejar e o esperançar são nutridos.

 

Josué Mattos

MEDIAÇÕES DE RISCO

O trabalho de Ricardo Barcellos traz a tona uma significação possível da fotografia, nos dias de hoje, como reprodução, imitação e falsificação do real, ao usá-la como linguagem híbrida entre à documentação e às novas significações da imagem introduzidas pela era digital.

Segundo ele: “criamos uma infinidade de filtros e interfaces que funcionam como ‘redes de proteção’ de nossas experiências. São as estratégias de risco controlado, ou play safe, como dizem os americanos.

Num exercício da metalinguagem Ricardo constrói filtros – que passam pela escolha da própria imagem, escala, suporte e intervenção técnica – para, com certa ironia, propor ênfase a realidade.

Sua estratégia passa pelo ‘aliciamento’ publicitário do sistema fotográfico, para construir simulacros da natureza e firmá-la como a maior invenção da cultura, o que o torna um mediador que produz imagens, objetos, histórias e situações.

São apropriações simples, onde a construção da narrativa se dá com a edição (escolha), corte, tratamento e, em alguns casos, com a junção de imagens independentes e distantes.

“Utilizo essa natureza  híbrida , gerando imagens que ficam no limite entre ficção e realidade, entre uma imagem objetiva e subjetiva, direta e indireta (manipulada)”, afirma o artista.

E é neste exercício que se situa “Floresta”, que abusa da escala para nos colocar na cena. A fotografia apresenta um floresta densa com vários animais que nos confundem. De longe parecem reais mas sua coexistência levanta suspeitas.

Ricardo, cita Robert Smithson que dizia que: “as câmeras têm algo de abominável, porque possuem o poder de inventar muitos mundos”, e completa: “isso se dá, justamente, por nos permitir estabelecer uma relação dialética entre a linguagem e mundo físico”.

Em “ artifícios”  Ricardo realiza uma explosão proposital numa madrugada de neblina, próximo a represa Billings em São Paulo. O resultado é uma imagem bela e lúdica, montada a partir da sobreposição de dois momentos: a neblina e os fogos de artifício. A imagem resultante nos coloca no limite entre a ficção e o registro instantâneo, numa espécie de alquimia entre natural e artificial.

Em “Icebergs”(e nas demais fotos) a intervenção digital gera suspeitas.  Trata-se do registro pessoal de uma expedição marítima à Antártica, em 2011, a bordo de um veleiro. No retorno, o artista resolve “recontextualizar” algumas imagens através da manipulação da cor.

Para afirmar que a questão ali não está nos discursos ecológicos e reafirmar a natureza objetual, as três imagens desta série são exibidas em pequenos backlights que realçam a linguagem fetichizante e publicitária. Com este trabalho, ele indaga: “o que é real?”

Segundo o artista: “Temos uma necessidade inerente por signos e imagens, que geram uma constante tensão entre o mundo e sua projeção imagética. É o desejo por um lugar vazio,  por aquilo que não está dado, que está oculto, na estranheza de um mundo que não é realidade nem ficção, mas alguma dimensão intermediária que só existe enquanto possibilidade ou “coincidência significativa”.

Coincidência esta, encontrada em “Dubai”, imagem realizada em 2009 numa pista de esqui cenográfica em um Shopping onde a temperatura externa estava por volta de 45°C, que denuncia a estranheza do artifício através de uma fotografia direta e objetiva, com enquadramento de cartão postal, luz fria e melancólica.

No vídeo, “O filtro é o Google”, o artista denuncia já no título que é a interface que da acesso ao seu desejo. É a ferramenta virtual que filtra a consciência do autor. Sartre dizia que: “Sem dúvida alguma, quem deseja sou eu, e o desejo é um modo singular da minha subjetividade. O desejo é consciência, já que só pode existir como tal (…)”

Na busca desta consciência, como um processo de reflexão, Barcellos vasculha, no site de busca, procurando por suas “palavras chave”. As imagens escolhidas, a partir de então, são editadas, impressas, filmadas e colocadas em movimento, sugerindo um jogo narrativo de possíveis associações que acabam não acontecendo, frustrando a compreensão do espectador, que é jogado dentro de um labirinto sem saída.

Explorando o potencial híbrido da fotografia, Ricardo procura insinuar uma construção ficcional e propor um enigma que deve ser resolvido por cada um, a partir de seu próprio repertório.

Esses “eventos”, que chama de “coincidências significativas”, dependem da nossa atribuição de valores simbólicos e é por isto, segundo ele, que “permanece  nebulosa a  reconciliação entre  imagem e  mundo”.

 

Franz Manata

Curador

Rio de Janeiro, Setembro de 2012

O UNIVERSO AZUL É UMA CABINE

A imagem lançada na retina
Meu pai, João, era cego. A última vez que o encontrei ele pediu que o levasse até a porta da sala para que pudesse ouvir o vento mais de perto. Depois me perguntou quantos passos seria preciso para chegar do outro lado da rua, o que havia entre um lado e outro e se o caminho teria curvas porque ele precisaria inventar um percurso para as imagens descritas e outras que restavam na sua lembrança. Não suportaria que o “barulho” poluísse a descrição. Seus olhos eram as mãos para equilibrar-se dentro da visão do seu mundo privado. Atravessou mais de cinco décadas selecionando um mundo imagético com o qual fosse possível conviver, dividir o espaço entre o seu corpo, o sofá, a poltrona onde ouvia música, os cantos da casa. Sempre precisou de silêncio para entender o que estava diante dos seus olhos. Do contrário, o barulho do dia poderia transformar-se em matéria (quase tátil) naquele mundo simbólico. Sua vida passou a ser a ideia de uma imagem a partir da voz de outra pessoa. Quando Ricardo Barcellos me contou sobre O Universo Azul é uma Cabine dois mundos se encontraram: o meu tumultuado mundo exterior (visível/carnal) e o de João, interior, construído a partir das palavras dos que estavam ao seu lado. Engana-se quem pensa que o meu mundo seria capaz de produzir mais imagens do que o dele.

Barcellos chegou ao mundo dos cegos para tentar entender e “suportar” o alto volume das imagens que nos atingem um segundo atrás do outro, como sombras. Partiu de um repertório fotográfico para propor situações de risco, desafiando a elaboração imagética e tendo como sensor um modelo mental que poderá ultrapassar a terceira dimensão. Quem vê o quê? “Informações massificantes precisam ser desvendadas para que possamos vencer o caos”, afirmou o compositor Sérgio Sá, 63 anos, cego congênito, um dos entrevistados para o projeto. Esse, o filtro proposto: quem suporta ver em abundância e quem precisa de informações para construir uma paisagem imediata? Algo que o sistema paraconsciente leva para a cultura da visão. O que está diante dos nossos olhos: uma nuvem ou uma bolha de sabão?

O Universo Azul é uma Cabine trata de imagens decodificadas. Um: a mesa rompida em partes onde cada quina tocará o dedo da visão não construída. Dois: horizontes na fronteira da imaginação: como será o azul? Objetos têm cheiro? A cor possui som? Como tocar a linha do horizonte? Três: a lua projetada e ao mesmo tempo, diluída: entre a fumaça/nuvem o que permanecerá entre o que estamos vendo e a solidão cósmica? Quatro: a descoberta da paisagem nas pontas dos dedos. A imaginação impressa em 3D onde o relevo vence a fotografia digital: aqui será o toque o protagonista do pensamento/visão. Cinco: dentro de um cubo transeuntes aparecem e somem entre o real e o imaginário: “Quem não vê percebe o corpo que ocupa um espaço. Quem vê percebe o corpo como se fosse uma imagem ambulante”, diz o artista procurando um caminho entre o que é volátil e o que poderá ser perpétuo.Seis: O pânico das imagens bombardeadas. Os olhos do autor tentam perceber a dor dos outros. Daqueles que depois da cegueira voltam a enxergar e sucumbem ao conflito entre os dois extremos, o que poderá resultar em depressão e morte.

O Universo Azul é uma Cabine é um experimento entre palavras, matéria, coisas e paisagens que tentam se equilibrar no limite do que é palpável e do que deixa de ser. Algo como tocar um objeto descrito à distância ou tentar conviver com a “realidade” de imagens lançadas em direção à nossa retina.

Diógenes Moura
Escritor e Curador de Fotografia

DEMASIADO

Houve um tempo em que o homem enxergava o mundo como um conjunto de forças caóticas e violentas que ameaçavam sua própria existência. Sem poder dominá-las, ele encontrava a possibilidade de experimentar um prazer extremo abandonando-se às desmesuras dos rituais dedicados ao deus Dionísio. Essas forças precisaram ser constrangidas pela boa medida das formas impostas por Apolo, para que o processo civilizatório se constituísse e para que o homem se reconhecesse como sujeito. Nesse esforço de domesticação da natureza, são recalcadas tensões que seguirão nos assombrando.

É assim que o excesso ressurge no seio da civilização moderna como efeito supostamente inofensivo, produzido pela própria técnica. As demasias que marcam os novos rituais – agora traduzidos em espetáculo, como é aqui o caso do fisiculturismo ou do jogo de guerra – não parecem comprometer o poder conquistado pelo homem, uma vez que são produto de sua vontade autônoma. Elas representam apenas um incremento da ordem conquistada, não mais a sua perturbação. Positivado como efeito plástico ou lúdico, o excesso se converte em valor: não há limite ou suficiência para aquilo que uma sociedade cultiva como belo ou prazeroso.

A medicina está para o corpo biológico como a guerra está para o corpo social: uma e outra são intervenções da cultura sobre um organismo em desordem. A analogia permite um intercâmbio de representações: a guerra é justificada como um remédio amargo e necessário, assim como o tratamento médico é pensado como luta contra um inimigo invasor.

O corpo saudável e a batalha sempre foram objetos de interesse da poesia, da pintura e da escultura. Mas essa abordagem estética não estava dissociada de uma dimensão moral: a ginástica se apresentava como uma disciplina formadora do caráter, como a guerra se pretendia um instrumento civilizador. Desse modo, ambas implicavam certo ideal justiça. É exatamente quando o corpo e a guerra se reduzem à sua função plástica, performática, que o exagero se faz necessário: a demasia da forma é um modo de compensar o esvaziamento de sentido psicológico ou social dos esforços despendidos.

O fisiculturismo, mesmo quando envolvido por um discurso médico, permanece uma atividade cosmética que não visa à boa funcionalidade do corpo. Ao contrário, opera essa ciência em detrimento de qualquer noção de saúde ou eficiência orgânica. Visa essencialmente à construção de poses que permitam ultrapassar a geometria dos músculos já um tanto idealizada pela escultura clássica.

Já o paintball é, num certo sentido, a guerra em uma versão literalmente pictórica, em que a tinta, e não o sangue, representa a morte. Como jogo, é menos um exercício de estratégia – como é, por exemplo, o xadrez – do que de dramatização. Se há uma expressão convincente nesses soldados, é porque eles reproduzem com sua atuação, figurino e cenografia o imaginário sobre a guerra construído sobretudo pelo cinema.

Mesmo que reconheçamos traços arquetípicos nas performances que restam do culto ao corpo ou à guerra, o que seus praticantes buscam é um efeito que se esgota no presente, em outras palavras, na apresentação, no espetáculo: trata-se portanto de um rito desprovido de mito.

As obras mostradas nesta exposição evidenciam que parte daquilo que chamamos de realidade já existe por si mesma como pose, independentemente de haver diante dela uma câmera. Mas não devemos tomar essas cenas como como algo simplesmente exótico e distante. Elas mostram a situação limite de uma experiência que atravessa nossa vida cotidiana: a representação é, e sempre foi, um elemento constituinte de nossa realidade social, e não há como viver dentro de uma cultura sem assumir papéis. Isso exige que a questão seja pensada para além das noções maniqueístas de verdade e mentira.

É evidente que, também para nós, a medicina demonstra sua eficiência inventando um corpo híbrido, algo entre o natural e o artificial, com músculos, seios, narizes, peles, mas também com expressões, hábitos e comportamentos que pouco traduzem nossa vontade ou personalidade. Por sua vez, a gestualidade e o vocabulário da guerra são assimilados em relações corriqueiras de estudo, de trabalho e de convivência social. Num ambiente que faz da competitividade seu principal motor, toda e qualquer eficiência é medida em função da capacidade de dominar um oponente. Assim, as poses que vemos aqui desempenhadas de forma hiperbólica também fazem parte, de algum modo, dos papeis que nos são atribuídos.

Na instalação mostrada na Galeria Central, vemos os corpos pesados de dois fisiculturistas, um homem e uma mulher, paradoxalmente suportados por tecidos leves e translúcidos. Assim, esses corpos densos e dilatados evidenciam sua condição de imagem: aquilo que o fisiculturismo trabalha e constrói é, de fato, não mais do que uma superfície. A projeção das fotografias está mediada por um aparato hospitalar: a imagem é refletida por um meio líquido, em princípio neutro e translúcido, que não parece afetar a imagem final. No entanto, a mesma substância médica que reflete esses corpos, de tempos em tempos, também os desestabiliza pelo efeito de gotejamento que perturba a superfície refletora. Reconhecemos então a inconstância desses corpos sólidos, elaborados em sua aparência pela técnica e que são, ao mesmo tempo, disfuncionalizados como organismo. Em sua capacidade de manipulação, a ciência torna o próprio corpo uma existência líquida, capaz de assumir formas planejadas e pouco compatíveis com sua própria natureza. As fotografia que complementam estas projeções, e que ocupam o Espaço Fidalga, apenas reafirmam em sua fixidez a diluição desse corpo numa imagem em que resta apenas um efeito pictórico, não mais um sujeito.

No vídeo que encontramos também no Espaço Fidalga, soldados surgem de um ambiente escuro, primeiro, apenas como manchas, depois, como corpos camuflados em movimentos rígidos, ralentados, quase robóticos. Mais cedo ou mais tarde, a luz misteriosa e dramática que acrescenta tensão à performance não se mostra suficiente para esconder a artificialidade da pose, das roupas e das armas. Ainda assim, a construção é bastante realista, não tanto porque sabemos o que é a realidade da guerra, mas porque corresponde, como dissemos, ao tratamento que o cinema dá a esse tema. A tela do vídeo é aquilo que, em nossa experiência média, mais caracteriza o campo de batalha. Mas há aqui uma perturbação desse espaço: visto na vertical, esse campo deixa de ser paisagem e se torna retrato, porque a guerra não existe em outro território que não esse corpo que a encena como um jogo.

 

Ronaldo Entler

 

 

INVENTO

Poemas ao Vento

Paulo Leminski

Sopra o vento, sopra o vento,
Sopra alto o vento lá fora;
Mas também meu pensamento
Tem um vento que o devora.
Há uma íntima intenção
Que tumultua em meu ser
E faz do meu coração
O que um vento quer varrer;
Não sei se há ramos deitados
Abaixo no temporal,
Se pés do chão levantados
Num sopro onde tudo é igual.

Dos ramos que ali caíram
Sei só que há mágoas e dores
Destinadas a não ser
Mais que um desfolhar de flores.

 

 

“Água da palavra

Quando mais dentro aflora”

Contexto: No Brasil, fermentam por todos os lados motivos para termos chegado a esse cenário alardeado como “crise política” – um golpe, uma presidenta destituída, reformas econômicas que não se completam, intervenção do exército nas ruas do Rio de Janeiro, como propaganda eleitoral para 2018, e um governo que inviabiliza qualquer crescimento nos campos da educação, da cultura, da economia, enquanto as investigações da “Operação Lava Jato” disseminam pânico numa população de políticos e empresários que se consideravam invulneráveis. Tudo isso anda de mãos dadas com uma lógica de impunidade, que há tempos opera no país, e com uma repressão, descaradamente em vigência, silenciando vozes que ousam se opor aos ditames corruptos e violentos desse tal poder (#mariellepresente).

 

“Como as palavras podem voltar a dizer no Brasil?”, questiona a escritora brasileira Eliane Brum[1]. A atual crise, segunda ela, é também uma crise de palavra. Fomos interditados. Nossas palavras, nosso dizer tornaram-se garrafas jogadas ao mar. Fomos distanciados propositalmente dos nossos destinatários. Nossas palavras são apenas repetições que voltam para nós mesmos ou para si mesmas, na melhor das hipóteses. Diante desse cenário de “encarceramento da língua”, que forças as palavras podem revolver para voltar a dizer no Brasil, sobre o Brasil, atravessando o Brasil?

 

“Risca certeira”[2]: João Guimarães Rosa fabulou um Brasil nada turístico e distante das praias – o sertão profundo, onde vive trabalhador da roça, e as lamúrias de um país para dentro de si. Grande curioso pelas gramáticas, Guimarães falava 19 línguas e era um inventor de palavras, de expressões, de noções linguísticas em seus romances. O escritor intraduzível, cuja escrita é de vastíssima interpretação mesmo para brasileiros, trocou cartas com alguns de seus tradutores que estão reunidas no Acervo João Guimarães Rosa, do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB/USP), em São Paulo, e totalizam 372 documentos. Estão publicadas as cartas trocadas com o tradutor italiano Edoardo Bizzarri, com o tradutor alemão Curt Meyer-Clason e com a tradutora estadunidense Harriet de Onís. A primeira tradução de uma obra de Guimarães para o idioma alemão foi publicada em 1964. Tradutor e autor concordaram, então, com uma versão de “Grande sertão: veredas”, após seis anos de trabalho e negociações editoriais. Em sua tradução, Clason construiu um glossário com 57 palavras que eram impossíveis de traduzir para o alemão, dentre elas: sertão, vereda, quintal, sêo.

 

A relação entre o conto “A terceira margem do rio” (publicado no livro Primeiras estórias, em 1962), de Guimarães Rosa, e a composição musical de mesmo título, de Milton Nascimento e Caetano Veloso (Circuladô[3], lançado em 1991), interessa para o contexto dessa mostra. Os músicos tentaram recriar o conto a partir da sonoridade das palavras e do ritmo da narrativa de Guimarães e também levaram em consideração algumas perguntas que seguem sem explicação e acontecimentos sem antecedentes na trama, como a decisão repentina de um pai em largar sua vida e viver em uma canoa, o que é a terceira margem do rio e o que é esse rio, metaforicamente.

 

O conto, narrado pelo filho, é uma história acerca do que não se enquadra, do que não somos habituados a viver, numa linguagem de maravilhamento e de transcendência sobre acontecimentos fantásticos. Milton e Caetano versaram sobre a angústia do filho, o silêncio do pai, a figura misteriosa de um rio e as densidades constitutivas do texto-teia de Guimarães: “Proa da palavra, duro silêncio, nosso pai,/ Margem da palavra entre as escuras duas/ Margens da palavra, clareira, luz madura/ Rosa da palavra, puro silêncio, nosso pai/ Meio a meio o rio ri por entre as árvores da vida/ O rio riu, ri por sob a risca da canoa/ O rio viu, vi e ninguém jamais ouviu/ O rio, ouviu, ouvi a voz das águas/ Asa da palavra, asa parada agora”[4]. E, assim, evocaram também a narrativa misteriosa do conto em que elementos como água, tronco, natureza, fluidez, silêncio ganham sonoridade, nos convidando a navegar por um rio denso, escuro, perigoso.

 

O título da mostra, explícita referência a versos da música: “Água da palavra/ Quando mais dentro aflora”, tenta evidenciar a palavra e, junto com ela, a sua pronúncia e a sua força de narrar e ficcionalizar, como fonte inesgotável de sentidos: sempre a serem refeitos, exploráveis, manufaturados, em plena abundância de algo a dizer, pensar e inventar sobre o mundo. Podemos, assim, admitir, a palavra como um rio imenso, de águas profundas a se mergulhar, cujo percurso é um abismo sem fim e em cujas margens não cartografáveis os avanços de poder não penetram pois a jurisdição é a do desejo, sempre mutante, sempre insistente, sempre incontestável.

 

Contraplano ou “são muitas as chaves quando somos mais de um”[5]: A literatura é um dos nossos poucos abrigos. E reside aí algumas das hipóteses desse projeto de exposição. 7 artistas se conectam por processos de tradução de obras literárias contemporâneas brasileiras. Jogam tentáculos com a intenção de ampliar, trans-criar, atualizar, recontar essas narrativas. E nesse sentido, o dizer por escrito e a linguagem que daí se amplia são uma arma potente, onde construímos lugar de voo, de experimentação. A palavra – instância conjugada da língua – é matéria e ignição para os trabalhos de Anna Guilhermina, Fabio Morais, Isabella Beneduci Assad, Lívia Aquino, Karina Machado, Marta Matushita e Ricardo Barcellos.

 

E assim, pensamos o criar como luta contra a afasia, como resistência, ainda que estes atos sejam uma interferência mínima e de alastramento contido; um mero caminhar na contramão, que seja; um mínimo gesto de fratura da ordem fatídica desse real que nos interpela à queima roupa. A arte pode ser apenas um esboço de interrupção, que, ao adicionar uma imagem, uma percepção do real, um sentido outro de estar no mundo, introduz, ainda assim, uma pausa que pode confundir os poderes vigentes e uma chance de tornar pronunciável outras forças de engajamento, de discussão, de combate.

 

Ainda que a descrença e as intensas ondas de opressão nos violentem, alguma resistência nos mobiliza a um exercício de invenção e de produção poética. A essa vida por um fio, resistimos bravamente. Contra a permanência das estruturas, contra a mera aceitação ao “é assim que temos que sobreviver”, contra a paralisia. A arte não é o único caminho, temos isso em mente. A luta é coletiva e ancorada em muitas mãos e fazeres. Mas compartilhamos aqui um desenho de algo que, ao menos ousa, projetar um possível ser e estar juntos, como um refluxo de não ao que não suportamos e de sim ao que desejamos.

 

“rio abaixo, rio a fora, rio a dentro”[6]: Em tempo, é preciso deixar claro: há muitos modos de efetivar um diálogo entre São Paulo e Berlim. Arquitetamos esse projeto que pretende lançar olhares em nossos escritores –  Miná Bulcão Ribas, Ana Cristina Cesar, João Guimarães Rosa, Adelaide Ivánova, Hilda Hilst, Clarice Lispector, Paulo Leminski – considerando suas obras e suas dizibilidades como um corpo que deixa transparecer muito acerca do Brasil, dos nossos afetos, dos nossos maus tempos políticos, de nossas infâmias, de nossos prazeres, de nossas ousadias culturais, feministas, literárias de renomear/reencenar a palavra. Assim, acreditamos que os gestos dos artistas que irrompem das páginas dessas escritoras e escritores são uma insistência que re-presentifica, ao mesmo tempo em que inventa questões, poéticas, sons, imagens e testemunhas-autoras do que fora constituído anteriormente nos livros já publicados. Tratam-se, portanto, de operações tradutórias e de ações que ampliam “modos de querer ver” o original, para citar Walter Benjamin (A tarefa do tradutor, 1923),

 

Nesse sentido, é preciso ressaltar que há no Brasil um grande time de poetas/tradutores, talvez encabeçado por Haroldo de Campos, Augusto de Campos, Décio Pignatari e Julio Plaza que encararam a tarefa descrita por Benjamin, como uma ação nas estruturas, entre linguagens, como uma ação lúdica e lúcida, crítica e criativa. “como diálogo de signos, como um outro nas diferenças (…). quer dizer, como trânsito de sentidos, como transcriação de formas da historicidade. (…) a tradução, como prática intersemiótica, depende muito mais das qualidades criativas e repertoriais do tradutor, quer dizer, de sua sensibilidade, do que da existência apriorística de um conjunto de normas e teorias: ‘para traduzir os poetas, há que saber-se poeta’”[7].

 

E é na esteira desses pensamentos ressoantes que os trabalhos se debruçam. É possível, então, perceber que o conjunto de trabalhos apresentados na mostra depara-se com questões de atualização e de refeitura de contextos literários para o campo das artes visuais: em práticas de apropriação de textos e ressignificação de tramas literárias por meio de experimentação de matérias primas; em exercícios performativos, que elucidam e trazem à tona questões biográficas e históricas; em processos de formulação de arquivos, seleção e edição de imagens que buscam re-caracterizar algo que não estava obviamente expresso nos textos, mas que suscita tais movimentos de leitura; em procedimentos de fratura e também de reescrita de obras literárias, com a intenção de ressaltar questões estruturais das narrativas ou dos processos de constituição ficcional que figuram nas obras originais e que são ressaltadas com outros ares nos trabalhos dos artistas.

 

Todos esses gestos em suas diversidades criam um outro lugar/tempo de ver, de ser e de exercitar literatura – externa aos livros, materializada no espaço, disponível ao/com o corpo. Os trabalhos parecem nos provocar a perceber outros tantos e variáveis sentidos daquilo que habita o terreno da palavra. Assim, nosso diálogo de aqui chega a um outro agora, em Berlim, com a vontade de narrar “o dentro do Brasil”[8]. E também com a vontade de ressaltar nesse manejo da palavra transfigurada, nesse ofício de (in)traduzibilidade entre português e alemão, nessa ponte constituída de reticências e potências: “a margem da palavra/ a hora da palavra/ a casa da palavra, onde o silêncio mora/ brasa da palavra”[9].

Galciani Neves

 

[1] Texto “O Brasil desassombrado pelas palavras-fantasmas”, de Eliane Brum, publicado em 10/julho/2017, em

https://brasil.elpais.com/brasil/2017/07/10/opinion/1499694080_981744.html

[2] Verso de “A terceira margem do rio”, composição de Caetano Veloso e Milton Nascimento.

[3] Disco de Caetano Veloso, em que o cantor e compositor faz homenagens a grandes nomes da literatura brasileira.

[4] Verso de “A terceira margem do rio”, composição de Caetano Veloso e Milton Nascimento.

[5] Anotações da artista Mayra Martins Redin, 2018.

[6] Trecho de “A terceira margem do rio”, de João Guimarães Rosa.

[7] Trechos do livro Tradução Intersemiótica, de Julio Plaza, 2003.

[8] Trecho de conversa entre Caetano Veloso e Milton Nascimento, no vídeo disponível em https://www.youtube.com/watch?v=j32B7tz-5Cs&list=RDj32B7tz-5Cs

[9] Versos de “A terceira margem do rio”, composição de Caetano Veloso e Milton Nascimento, 1991.