Houve um tempo em que o homem enxergava o mundo como um conjunto de forças caóticas e violentas que ameaçavam sua própria existência. Sem poder dominá-las, ele encontrava a possibilidade de experimentar um prazer extremo abandonando-se às desmesuras dos rituais dedicados ao deus Dionísio. Essas forças precisaram ser constrangidas pela boa medida das formas impostas por Apolo, para que o processo civilizatório se constituísse e para que o homem se reconhecesse como sujeito. Nesse esforço de domesticação da natureza, são recalcadas tensões que seguirão nos assombrando.

É assim que o excesso ressurge no seio da civilização moderna como efeito supostamente inofensivo, produzido pela própria técnica. As demasias que marcam os novos rituais – agora traduzidos em espetáculo, como é aqui o caso do fisiculturismo ou do jogo de guerra – não parecem comprometer o poder conquistado pelo homem, uma vez que são produto de sua vontade autônoma. Elas representam apenas um incremento da ordem conquistada, não mais a sua perturbação. Positivado como efeito plástico ou lúdico, o excesso se converte em valor: não há limite ou suficiência para aquilo que uma sociedade cultiva como belo ou prazeroso.

A medicina está para o corpo biológico como a guerra está para o corpo social: uma e outra são intervenções da cultura sobre um organismo em desordem. A analogia permite um intercâmbio de representações: a guerra é justificada como um remédio amargo e necessário, assim como o tratamento médico é pensado como luta contra um inimigo invasor.

O corpo saudável e a batalha sempre foram objetos de interesse da poesia, da pintura e da escultura. Mas essa abordagem estética não estava dissociada de uma dimensão moral: a ginástica se apresentava como uma disciplina formadora do caráter, como a guerra se pretendia um instrumento civilizador. Desse modo, ambas implicavam certo ideal justiça. É exatamente quando o corpo e a guerra se reduzem à sua função plástica, performática, que o exagero se faz necessário: a demasia da forma é um modo de compensar o esvaziamento de sentido psicológico ou social dos esforços despendidos.

O fisiculturismo, mesmo quando envolvido por um discurso médico, permanece uma atividade cosmética que não visa à boa funcionalidade do corpo. Ao contrário, opera essa ciência em detrimento de qualquer noção de saúde ou eficiência orgânica. Visa essencialmente à construção de poses que permitam ultrapassar a geometria dos músculos já um tanto idealizada pela escultura clássica.

Já o paintball é, num certo sentido, a guerra em uma versão literalmente pictórica, em que a tinta, e não o sangue, representa a morte. Como jogo, é menos um exercício de estratégia – como é, por exemplo, o xadrez – do que de dramatização. Se há uma expressão convincente nesses soldados, é porque eles reproduzem com sua atuação, figurino e cenografia o imaginário sobre a guerra construído sobretudo pelo cinema.

Mesmo que reconheçamos traços arquetípicos nas performances que restam do culto ao corpo ou à guerra, o que seus praticantes buscam é um efeito que se esgota no presente, em outras palavras, na apresentação, no espetáculo: trata-se portanto de um rito desprovido de mito.

As obras mostradas nesta exposição evidenciam que parte daquilo que chamamos de realidade já existe por si mesma como pose, independentemente de haver diante dela uma câmera. Mas não devemos tomar essas cenas como como algo simplesmente exótico e distante. Elas mostram a situação limite de uma experiência que atravessa nossa vida cotidiana: a representação é, e sempre foi, um elemento constituinte de nossa realidade social, e não há como viver dentro de uma cultura sem assumir papéis. Isso exige que a questão seja pensada para além das noções maniqueístas de verdade e mentira.

É evidente que, também para nós, a medicina demonstra sua eficiência inventando um corpo híbrido, algo entre o natural e o artificial, com músculos, seios, narizes, peles, mas também com expressões, hábitos e comportamentos que pouco traduzem nossa vontade ou personalidade. Por sua vez, a gestualidade e o vocabulário da guerra são assimilados em relações corriqueiras de estudo, de trabalho e de convivência social. Num ambiente que faz da competitividade seu principal motor, toda e qualquer eficiência é medida em função da capacidade de dominar um oponente. Assim, as poses que vemos aqui desempenhadas de forma hiperbólica também fazem parte, de algum modo, dos papeis que nos são atribuídos.

Na instalação mostrada na Galeria Central, vemos os corpos pesados de dois fisiculturistas, um homem e uma mulher, paradoxalmente suportados por tecidos leves e translúcidos. Assim, esses corpos densos e dilatados evidenciam sua condição de imagem: aquilo que o fisiculturismo trabalha e constrói é, de fato, não mais do que uma superfície. A projeção das fotografias está mediada por um aparato hospitalar: a imagem é refletida por um meio líquido, em princípio neutro e translúcido, que não parece afetar a imagem final. No entanto, a mesma substância médica que reflete esses corpos, de tempos em tempos, também os desestabiliza pelo efeito de gotejamento que perturba a superfície refletora. Reconhecemos então a inconstância desses corpos sólidos, elaborados em sua aparência pela técnica e que são, ao mesmo tempo, disfuncionalizados como organismo. Em sua capacidade de manipulação, a ciência torna o próprio corpo uma existência líquida, capaz de assumir formas planejadas e pouco compatíveis com sua própria natureza. As fotografia que complementam estas projeções, e que ocupam o Espaço Fidalga, apenas reafirmam em sua fixidez a diluição desse corpo numa imagem em que resta apenas um efeito pictórico, não mais um sujeito.

No vídeo que encontramos também no Espaço Fidalga, soldados surgem de um ambiente escuro, primeiro, apenas como manchas, depois, como corpos camuflados em movimentos rígidos, ralentados, quase robóticos. Mais cedo ou mais tarde, a luz misteriosa e dramática que acrescenta tensão à performance não se mostra suficiente para esconder a artificialidade da pose, das roupas e das armas. Ainda assim, a construção é bastante realista, não tanto porque sabemos o que é a realidade da guerra, mas porque corresponde, como dissemos, ao tratamento que o cinema dá a esse tema. A tela do vídeo é aquilo que, em nossa experiência média, mais caracteriza o campo de batalha. Mas há aqui uma perturbação desse espaço: visto na vertical, esse campo deixa de ser paisagem e se torna retrato, porque a guerra não existe em outro território que não esse corpo que a encena como um jogo.

 

Ronaldo Entler

 

 

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