A imagem lançada na retina
Meu pai, João, era cego. A última vez que o encontrei ele pediu que o levasse até a porta da sala para que pudesse ouvir o vento mais de perto. Depois me perguntou quantos passos seria preciso para chegar do outro lado da rua, o que havia entre um lado e outro e se o caminho teria curvas porque ele precisaria inventar um percurso para as imagens descritas e outras que restavam na sua lembrança. Não suportaria que o “barulho” poluísse a descrição. Seus olhos eram as mãos para equilibrar-se dentro da visão do seu mundo privado. Atravessou mais de cinco décadas selecionando um mundo imagético com o qual fosse possível conviver, dividir o espaço entre o seu corpo, o sofá, a poltrona onde ouvia música, os cantos da casa. Sempre precisou de silêncio para entender o que estava diante dos seus olhos. Do contrário, o barulho do dia poderia transformar-se em matéria (quase tátil) naquele mundo simbólico. Sua vida passou a ser a ideia de uma imagem a partir da voz de outra pessoa. Quando Ricardo Barcellos me contou sobre O Universo Azul é uma Cabine dois mundos se encontraram: o meu tumultuado mundo exterior (visível/carnal) e o de João, interior, construído a partir das palavras dos que estavam ao seu lado. Engana-se quem pensa que o meu mundo seria capaz de produzir mais imagens do que o dele.
Barcellos chegou ao mundo dos cegos para tentar entender e “suportar” o alto volume das imagens que nos atingem um segundo atrás do outro, como sombras. Partiu de um repertório fotográfico para propor situações de risco, desafiando a elaboração imagética e tendo como sensor um modelo mental que poderá ultrapassar a terceira dimensão. Quem vê o quê? “Informações massificantes precisam ser desvendadas para que possamos vencer o caos”, afirmou o compositor Sérgio Sá, 63 anos, cego congênito, um dos entrevistados para o projeto. Esse, o filtro proposto: quem suporta ver em abundância e quem precisa de informações para construir uma paisagem imediata? Algo que o sistema paraconsciente leva para a cultura da visão. O que está diante dos nossos olhos: uma nuvem ou uma bolha de sabão?
O Universo Azul é uma Cabine trata de imagens decodificadas. Um: a mesa rompida em partes onde cada quina tocará o dedo da visão não construída. Dois: horizontes na fronteira da imaginação: como será o azul? Objetos têm cheiro? A cor possui som? Como tocar a linha do horizonte? Três: a lua projetada e ao mesmo tempo, diluída: entre a fumaça/nuvem o que permanecerá entre o que estamos vendo e a solidão cósmica? Quatro: a descoberta da paisagem nas pontas dos dedos. A imaginação impressa em 3D onde o relevo vence a fotografia digital: aqui será o toque o protagonista do pensamento/visão. Cinco: dentro de um cubo transeuntes aparecem e somem entre o real e o imaginário: “Quem não vê percebe o corpo que ocupa um espaço. Quem vê percebe o corpo como se fosse uma imagem ambulante”, diz o artista procurando um caminho entre o que é volátil e o que poderá ser perpétuo.Seis: O pânico das imagens bombardeadas. Os olhos do autor tentam perceber a dor dos outros. Daqueles que depois da cegueira voltam a enxergar e sucumbem ao conflito entre os dois extremos, o que poderá resultar em depressão e morte.
O Universo Azul é uma Cabine é um experimento entre palavras, matéria, coisas e paisagens que tentam se equilibrar no limite do que é palpável e do que deixa de ser. Algo como tocar um objeto descrito à distância ou tentar conviver com a “realidade” de imagens lançadas em direção à nossa retina.
Diógenes Moura
Escritor e Curador de Fotografia